Vou contar a história do Rui.
RUI
Quando adolescente,
Rui era um moleque como qualquer outro.
Ia pra escola de
manhã, mas não gostava de estudar muita coisa não. Levava tudo meio nas coxas e
passava com notas medianas. Nas férias, já lembrava de pouco que tinha
aprendido. No seu tempo livre à tarde, às vezes
se reunia com os amigos pra fazer um trabalho de escola aqui e ali. Ele pediu
pra não contar, mas em várias dessas reuniões eles não faziam nada de
produtivo. Quando não se reunia com os amigos, passava a tarde tirando aquele cochilo
gostoso de depois do almoço, ou navegando pela internet meio sem rumo. Vez ou
outra estudava, mas nunca por mais de uma hora.
Na hora de marcar um
curso na ficha de inscrição do vestibular, não sabia o que escolher. Não tinha
gostos muito definidos - na verdade não gostava de estudar nada. Via que seus
amigos estavam marcando um curso específico e achou uma boa ideia seguir o mesmo caminho.
Na faculdade, adorou o
primeiro ano. Algumas matérias eram interessantes e a turma, principalmente,
bem agitada. Curtia ir pra facul mais pela interação social. As notas no começo
eram boas, mas depois começaram a ficar mais capengas. Rui começou a estudar
menos, já não se sentia mais com vontade de fazer o curso. Mas já estava na
metade, não poderia largar. Não queria de forma alguma jogar 2 anos de estudos
na lata de lixo. Aceitava que aquele era o curso natural das coisas e, pra ser
sincero, achava tosco quando ouvia que Fulano ou Beltrano tinham desistido do
curso. Se formou para o orgulho da família, que agora tinha mais um bacharel.
Chegava em casa sempre
bastante cansado. Trabalhava muito e tinha pouco tempo para si. Com isso,
sentia a necessidade de se recompensar na volta ao lar. Geralmente comia
algumas besteiras, jogava videogame ou assistia um filme, tomava cerveja e ia
dormir, afinal, tinha que acordar cedo para trabalhar no outro dia. Nunca
perdia a contagem dos dias da semana, afinal contava os minutos para a chegada
da sexta-feira, mas de vez em quando se surpreendia com mais um mês que passava
rápido. "Caracoles, já tamos quase
no final do ano!", pensava com frequência. Nos tão aguardados finais
de semana, Rui extrapolava. Gostava mesmo era de encher a cara - coisa mais
natural do mundo, a maioria dos seus amigos também gostava. No domingo, batia
uma tristeza. Primeiro porque percebia que não
tinha feito lá grandes coisas no dia a não ser se recuperar da ressaca. Segundo que a segunda-feira estava batendo na porta e
Rui tinha que trabalhar.
Rui não gostava muito
da sua aparência. Era gordinho e ficava mal quando vez ou outra alguém
comentava sobre o assunto. Mas fingia que não ligava, dava risada. Quando via
outro gordinho não, mas quando via um moleque afeminado, um gótico de olho
pintado ou alguém com estilo diferente, tirava sarro. Fazia piada dos outros
com os amigos e se sentia bem com isso.
Rui ainda não gostava
muito da sua aparência. Era gordinho. Mas não mais por causa do que os outros
achavam (não ligava mais pra isso), e sim porque percebeu que não estava cuidando da sua saúde. Viu que
seu corpo era apenas o reflexo de anos evitando exercícios e comendo porcarias.
Como não se sentia bem com suas gordurinhas, começou a pesquisar sobre
alimentação. Experimentou salada, que antes não comia de jeito nenhum, e
gostou. "Com bastante tempero fica bom", ele disse na época. Com
isso, foi perdendo o preconceito e chegou a provar os abomináveis brócolis e
abobrinha. Gostou do primeiro e odiou o segundo. Mas
continuou experimentando.
Pra não comer porcarias de supermercado, teve que
começar a esquentar a barriga no fogão. Viu umas receitas no YouTube e passou
a comprar suas próprias comidas. Ficou abismado quando viu que uma pizza congelada
valia 3 ou 4 kilos de vegetais, se ele escolhesse os da época.
Passou pelado na
frente do espelho, depois do banho, e viu que algo estava diferente. Correu pra
balança e confirmou que tinha perdido alguns kilos. Junto com a alimentação,
tinha começado a se exercitar. Academia não é muito a dele, também não gostava
de esportes. Mas depois de procrastinar por umas 2 semanas, finalmente foi dar
uma corrida na rua. No outro dia tava podre de tanta dor muscular. No meio da
tarde, cansado, deitou na cama e tentou lembrar quando foi a última vez que
tinha suado tanto, mas não conseguiu. Demorou 2 dias pra se recuperar e correr
de novo, mas dessa vez saiu pra rua empolgadão. Viu que o mais difícil era
calçar o tênis e sair por aí - o ato de correr era fácil, na verdade.
Voltou a recorrer
ao YouTube. Procurou alguns exercícios simples que poderia fazer além da
corrida. Experimentou flexões num dia, mas sentiu dor nos ombros e preferiu não
arriscar uma lesão. Fez abdominais e sofreu, mas achou bacana. Depois do
cansaço das próprias abdominais, ele já ficava deitado ali mesmo por um tempo,
recuperando o fôlego e planejando os exercícios do dia seguinte. Começou a
perceber que quando tentava, em pé, tocar os pés com suas mãos, tava chegando
mais perto - ainda que faltasse muito pra conseguir.
Não demorou a perceber que a
ida pro trabalho era maçante. Acordava muito cedo, perdia muito tempo no
trânsito e tudo pra chegar num trabalho que já não lhe empolgava mais. Numa
segunda-feira, almoçou com um colega de escritório e ouviu que o cara também
tava frustrado na empresa, mas "tinha família" e não poderia ficar
sem salário. Rui lembrou que não tinha mulher, nem filhos, e que poderia deixar
o trabalho a qualquer momento, ao contrário do colega. No fundo do seu coração,
percebeu que a ideia de deixar aquela empresa pra trás e tentar uma coisa nova
lhe fez bem. No meio do expediente, parou pra tomar um cafézinho e pensou de
novo na ideia. Sorriu com o canto da boca. Queria tomar uma decisão, mas estava
inseguro. Argumentou para si mesmo que mesmo mudando de cargo, não se sentia motivado pra continuar trabalhando com seja lá qual era o negócio daquela empresa -
hoje em dia ele nem lembra mais. Pensou que um aumento de salário seria ótimo, mas que as coisas que gostava de fazer na verdade custavam pouco ou nada.
Gostava de ver filmes
e tinha uns comentários bem votados no Filmow. Gostava de ver resenhas de
filmes no YouTube e ficou assustado com a quantidade de canais e blogs do tipo
que existiam. Pensou em fazer algo do tipo, mas desanimou. Pesquisou um pouco
mais e percebeu que muitos desses canais e blogs não duravam. Se perguntou o
porquê, se tantos que ele acompanhava tinham conteúdos tão legais. Resolveu
criar um blog sobre filmes de qualquer jeito. Escreveu um post e ninguém leu.
Não ficou motivado pra escrever o segundo post, mas tentou se forçar a escrever
- buscou a determinação que, quando já sem fôlego, o mantinha correndo pra
alcançar seu objetivo diário de X kilômetros. Escreveu o segundo post e ninguém
leu. Ficou chateado e desistiu. Ligou seu fracasso bloguístico com
outros que tinha visto na internet. Pensou que o que faltava pra ele e pra muitos outros talvez
fosse apenas determinação. Se sentiu ainda pior, por ter desistido. Outros
pensamentos negativos vieram junto, como de que seu conteúdo não era legal, que
ninguém se interessaria, que nunca ganharia dinheiro com aquilo. E ficou mais
frustrado. Decidiu procurar no YouTube sobre
como manter um blog. Aprendeu algo aqui e acolá sobre o assunto e com o novo
conhecimento veio uma vontade de colocá-lo em prática. Ativou seu blog
novamente, escrevendo o melhor post da sua vida, caprichou mesmo. Mas ninguém leu. Procurou mais sobre como divulgar um blog. Viu uma quantidade de informações
que o deixou perdido, mas resolveu escolher umas 2 dicas que achou mais bacana.
As botou em prática e até fez uma lista de filmes que queria ver para depois
resenhar. Percebeu que estava motivado pra continuar e foi contactado por um
estranho que havia lido seu post. Curtiu a sensação e botou na cabeça que não
abandonaria seu pequeno projeto. Pensou que não ganharia dinheiro com aquilo,
mas que seria seu novo hobby. Ao invés de apenas consumir conteúdo de
terceiros, agora continuava consumindo, porém construía algo seu ao mesmo
tempo.
Depois de pedir demissão, a
grana começou a ficar curta. Não sabia bem o que fazer, não queria um emprego
formal tão cedo e tava curtindo as férias. A grana apertou mais. Atrasou a
conta de luz e odiou pagar juros no mês seguinte. Acabou conseguindo uns bicos
de garçom em um restaurante perto da sua casa. Seus amigos tiraram onda e
questionaram como ele tinha ido parar assim no fundo do poço, sendo que antes
tinha um emprego bacana em uma empresa bacana. Falou para os amigos que não
planejava seguir uma carreira como garçom, mas que não via problema em traçar
esse caminho por algum tempo. Disse ainda que se divertia mais no seu novo bico
do que no seu trabalho anterior. Falou que tinha cortado o stress de horas
diárias no trânsito, já que trabalhava perto de casa. Contou algumas histórias divertidas que aconteciam a cada noite no restaurante e depois olhou pro chão, tentando
lembrar de alguma história bacana que tinha acontecido na sua antiga empresa. Lembrou
de apenas uma ou duas, perdidas em meio a dias e dias que passavam de forma
semelhante. Falou pros amigos que tomava uma cervejinha com o pessoal depois do expediente.
Deu risada quando contou isso e percebeu que curtia trabalhar ali. Foi pra casa com a certeza de que existem outros caminhos além do trabalho formal em escritório.
Botou na cabeça que não queria usar sapato, gravata e calça social no verão
nunca mais. Pesquisou empregos alternativos na internet e se interessou por
trabalhar em navios, por dar aulas de alguma coisa ou por ganhar dinheiro pela
própria internet. Lembrou que estava mais feliz agora do que antes, mesmo que
com menos grana. Pensou que ia tentar alguma dessas coisas alternativas e, se
não desse certo, ainda tinha a segurança de conseguir um emprego razoável em
algum lugar qualquer. Com isso, divagou sobre risco, sobre criar oportunidades
ao invés de esperar que caiam do céu.
Conheceu uma pessoa
nova que sabia programar desde pequena. Pensou como não fazia nada de produtivo
quando era adolescente. Pensou que adoraria saber programar. E lembrou de
outros interesses que tinha, mas que nunca havia desenvolvido. Pesquisou na net
e descobriu que tinham cursos de praticamente
qualquer coisa que ele procurasse, muitos deles de graça. Quis voltar a
estudar, mas lembrou da sua antiga universidade e achou o sistema tradicional
de ensino um pouco retrógrado. Viu que alguns cursos online conferiam certificados. E pesquisando
mais a fundo, percebeu que virar um estudante autônomo era uma boa opção.
Resolveu estudar um pouco todos os dias, por conta própria, e não deixar de
aprender nunca. Caçou um curso de espanhol aqui, um de webdesign ali e botou na
cabeça que os terminaria.
Rui tinha mudado.
Estava bem mais magro e se alimentava melhor. Ganhava menos, mas trabalhava
menos e tinha mais tempo pra fazer as coisas que gostava. Investia num projeto
pessoal e ficava feliz com os progressos que tinha, ainda que
pequenos. Não invejava mais os outros, não tirava sarro da aparência de
ninguém, evitava fofocas sobre as vidas alheias e tinha até arriscado um
moicano, que considerava daora. Tinha a convicção de que todas essas mudanças
na sua vida tinham sido pra melhor. Se sentia uma nova pessoa - e uma pessoa
melhor. Gostava de quem era.
MAS MESMO ASSIM, ÀS VEZES RUI SE SENTIA INFELIZ
Via outros alcançando
grandes feitos e sentia a pressão para conseguir o mesmo. Às vezes ficava na
dúvida se não deveria voltar a trabalhar numa grande empresa e juntar bastante
dinheiro. Assim poderia comprar um carro melhor, uma casa maior, comprar um sabonete
de 3 reais ao invés de outro de 1, ir numa padaria mais chique ao invés de na
mais barata. Pensava se daqui a 30 anos teria dinheiro, teria uma carreira
consolidada. E ficava confuso quando lembrava de amigos que estavam nesse tipo
de trajetória promissora, mas que não pareciam felizes - continuavam contando
os dias pros finais de semana.
Certo dia foi correr no parque e se
sentou num banco pra descansar. Viu um pai brincando com um filho pequeno. O
moleque deveria ter 1 ano e pouco e tava começando a andar, com aqueles passos
meio inseguros e trôpegos, manja? O gurizinho correu atrás de uma bola, caiu e
riu. Levantou e continuou correndo. Nessa hora, Rui sorriu. Por um momento,
tinha esquecido das suas dúvidas quanto à grandes realizações e construção de
uma carreira como a que seu pai tinha construído. Pensou que bastava uma
criança engraçadinha pra fazer uma pessoa feliz. Pensou em como pequenos
momentos o faziam feliz. Pensou que a felicidade é feita de pequenos momentos,
ao invés de grandes realizações. Pensou que deveria aproveitar mais risadas de
crianças no parque. E mais risadas da sua mãe, e dos seus amigos. E mais
recordes de corridas batidos. E mais batidas de frutas deliciosas no café da
manhã. E mais café quentinho de manhã. E mais cada filme que assistia, e cada
livro que lia. E mais cada momento.
E sorriu efusivamente,
igual a criancinha quando caiu no chão. E naquele momento teve certeza que
estava no caminho certo.
Comenta aí se você gostou ou não (pode ser como anônimo, não dá nada). E fala comigo lá no twitter, nem que seja pra dizer que o post ficou uma merd*! ;))
Muito bom. Textos assim nos faz parar para pensar. A forma como você escreve prende a atração, por mais que eu seja preguiçoso pra ler textos grandes. Parabéns e muito sucesso para seu blog
ResponderExcluirQue massa seu comentário! Quando escrevo, fica difícil ter uma percepção de como o texto está ficando, o autor fica "viciado" na criação e perde a habilidade de ver de fora, criticamente. Geralmente peço pra patroa dar uma lida, mas esse tipo de feedback (a forma como você escreve prende a atração) não costumo ter, fiquei feliz pra caralho, Muito obrigado! =DD
Excluirseus textos são leves e ao mesmo tempo querem deixar um legado! acho isso encantador! continue promovendo seu blog no twitter (pois é de lá que eu o conheci), ele é fantástico, parabéns!
ResponderExcluirCaraca! "Encantador" e "fantástico" foi o seu comentário. Agradeço muito mesmo, fez meu dia! =DDDDD
Excluiroie! muito bom!
ResponderExcluirOpaaa! Mesmo que seja um comentário simples assim, conta muito pra mim. Obrigado! ;))))
ExcluirTodo mundo tem uma versão melhorada dentro de si, mas é preciso coragem pra liberar este melhor Rui.
ResponderExcluirJá passei por esta fase também. Trabalhei em multinacional, o dinheiro e os benefícios eram bons, fiz a faculdade meio que nas coxas (não ia mal, mas hoje sei que poderia ter ido BEM melhor), mas sempre faltava algo. Na verdade, ainda sinto que falta algo. Hoje em dia apenas dou aulas particulares, e confesso que o dinheiro faz falta, mas só de poder fazer as coisas meio que do meu jeito visando o aprendizado dos outros dá uma boa sensação, apesar de ainda não ser exatamente o que quero.
Ótimo, como sempre :)
Na verdade acho que sempre vai faltar algo. Somos inquietos por natureza, queremos sempre algo melhor, algo diferente.
ExcluirNão acho que trabalhar em empresa seja o problema se a pessoa está feliz com isso, mas no seu caso só apoio a decisão de dar aulas, buscar algo que te complete mais e te deixe mais feliz. Talvez seja um primeiro passo enquanto ainda procuras algo que te realize. Boa sorte e muito, mas muito obrigado pelo comentário. Esse "Ótimo, como sempre" fez meu dia! =DDD
sensacional!!!!
ResponderExcluirtexto maravilhoso, e quer saber mais, me identifiquei muito com o Rui =D
Que massa, Ingrid! =DD
ExcluirAcho que bastante gente se identifica, pelo menos em alguns pontos. Por isso botei no título que a história pode não ser só do Rui, mas "minha, sua, ou de alguém que a gente conhece".
Obrigado mesmo por comentar! =)))
Que texto ótimo cara, sério msm, vc escreve muito bem, e esse lance de usar uma estória fictícia pra demonstrar algo real me atrai bastante, faça mais disso! Eu gosto bastante!
ResponderExcluirObg
Quando vir a calhar, faço mais sim! Valeu pelo elogio, Eron!
ExcluirMuito bom mesmo!
ResponderExcluirVoce deveria escrever un livro :D
haha Muito obrigado! :D
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